“Acontece que quase sempre o amor é uma espécie de luta.”

(pág. 406)


 Há aproximadamente um ano, tomamos conhecimento da pandemia de coronavírus e em pouco tempo foi decretada quarentena. Com isso e as horas passadas em casa, resolvi começar a assistir alguma série; e foi assim que comecei a assistir Gilmore Girls. Em poucas semanas havia terminado aquela série, e sem dúvidas muitas das minhas futuras leituras foram influenciadas pela série - uma delas, de um livro citado brevemente em um episódio, sendo descrito como “um verdadeiro clássico”.

 

 Fiquei intrigada, não nego, de ouvir falar pela primeira vez de O Vale das Bonecas e já na “etiqueta” de clássico. Se era um clássico, oras, por que nunca havia ouvido falar dele? Além de tudo isso, foi um livro dificílimo de achar; a última edição publicada foi em meados dos anos 2000. Com isso, fui garimpando entre sebos e vendas online, até achar uma pessoa que me vendeu a edição do Círculo do Livro em ótimo estado.


 Demorou para tomar coragem e ler, admito. Não sabia absolutamente nada do livro e estaria apenas mergulhando de cabeça. Agora escrevendo isso, no dia em que terminei de lê-lo (08/03/2021), entendo o motivo de ser considerado um clássico e o motivo de ser um clássico contraditório entre o meio literário.


 O Vale das Bonecas se passa entre os anos de 1945 e 1966, permeando os meios artísticos dos Estados Unidos mais ilustres: Hollywood e Broadway. Acompanha particularmente três mulheres: Anne, uma mulher de 20 anos delicada e de beleza extraordinária que foi do interior para Nova York em busca de uma vida diferente, acabando por trabalhar em uma agência voltada principalmente para atores e cantores; Neely, uma adolesente de 17 anos cheia de ambições que cresceu no teatro de variedades e tem uma voz incrível, atingindo por meio dela o estrelato; e Jennifer, uma mulher sem nenhum talento especial ou habilidades, mas que atingiu o sucesso por meio de sua beleza e seu corpo escultural.


 As três compartilham um fio que as liga quase que fragilmente em um primeiro olhar, mas que depois se fortalece diante de nossos olhos - o vício em remédios, principalmente os barbitúricos. Sejam remédios para dormir, para se manter acordadas, para emagrecer e tudo que possa imaginar, essas mulheres acabaram por consumir e deixar que suas vidas artísticas fossem guiadas por isso.


 A escrita desse livro, admito, não chega a ser exatamente excelente, mas nos prende de forma curiosa. Imergimos no psicológico das personagens principais e daqueles que as rodeiam, por mais que não de forma muito além do superficial; o que admito ser um defeito do livro. Apesar disso, creio que a divisão feita por Susann foi esperta, já que a primeira metade do livro que se passa entre 1945-1947 nos permite conhecer os anseios, paixões, vontades e sonhos das personagens; e a segunda, que passa rápido pelos anos de acordo com os pontos de vista específicos de cada personagem, nos permite ter um panorama geral de como a vida delas eram e o que viriam a ser.


 Agora, devo dizer que esse livro me intrigou de uma forma muito curiosa, pois ao terminá-lo eu simplesmente não sabia dizer se havia gostado ou não. A narrativa foi fluida e me envolvi com os personagens, mas ainda assim me questionava sobre a forma como as personagens foram construídas sobre arquétipos clássicos da década de 1960, mas ainda assim os personagens à sua volta tinham um quê de raso. Sendo sincera, acho que faltou mais profundidade e desenvolvimento não só para eles, mas para a relação entre eles e Anne, Jennifer e Neely.


 Para isso, temos que falar das figuras masculinas. Lyon Burke, o galante por quem Anne se apaixona e dedica anos de sua vida esperando-o mesmo que não haja esperanças de que ele volte, por mais que tenha conquistado meus sentimentos no começo, da metade para o fim apenas me era indiferente. A forma como Anne dedicou tanto amor e energia a ele, além de ser responsabilizada por coisas que não tinha culpa, deixaram-me bem incomodada.


 Allen Cooper foi, talvez, um dos homens que mais me irritaram nesse livro inteiro. Praticamente obrigou Anne a noivar com ele logo nas primeiras páginas do livro e, quando rejeitado, agiu como um garoto mimado que teve seu pirulito tomado de suas mãos. Não só ele, como outros homens durante o livro também agiram assim, o que para mim foi repugnante e dolorosamente real.


 “E nunca se esqueça que este mundo é dos homens, e que as mulheres apenas reinam nele enquanto são jovens e bonitas.”

(pág. 155)


 Como é possível observar na citação acima, o livro retrata bem o caráter forte misógino que havia na época - afinal, as mulheres tinham que corresponder a certos padrões de beleza e modos, e quando falhavam nisso, eram taxadas de todos os tipos de nomes: “morcega” para as já velhas, “orgulhosas” para as que ambicionavam o mínimo, e etc. Era esperado que elas se contentassem com o que tinham, e mesmo que seus maridos fossem infiéis ou fizessem algo de errado, a culpa acaba recaindo na esposa. Atual, não?


 Por isso que esse livro é considerado um livro com fortes tendências feministas, por mais que ao olhar aplicando os moldes de hoje, não se encaixe exatamente no que se espera. O Vale das Bonecas discute as pressões dos padrões estéticos por meio das pílulas, o vício nestas, as relações entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homes - algo realmente chocante para a época, dado que os tabus estavam mais fortes e vivos do que nunca.


 A questão que mais me chamou a atenção foi o vício por remédios, que é o que guia toda a obra até seu final. Não sabia, quando comecei a ler, que “dolls” (bonecas, em inglês) eram gírias para os barbitúricos, então apenas ao terminar a leitura compreendi esse conceito. Mas devo dizer que a construção do vício nas três personagens é muito bom, principalmente na Anne. Fiquei surpresa com os acontecimentos que envolvem as bolinhas vermelhas e a influência delas na vida de Anne, Neely e Jennifer.


 Falando sobre personagens, a que mais criei afeto foi Anne, pois ela é uma daquelas personagens inteligentes e decididas que admiram a qualquer leitor. O arco dela, por mais que tenha a falha que acredito ser o romance com Lyon Burke, acaba de modo que nunca esperaria, mas que faz muito sentido para o contexto do livro e o caminho que ele estava levando. Neely, para mim, foi a maior decepção. Comecei adorando-a, por mais que contraria a diversas falas suas, mas no final apenas a detestava completamente. Jennifer foi a mais indiferente para mim pois, por mais que achasse a relação sáfica que teve interessante, creio que houve muita superficialidade em sua construção, o que me afastou de qualquer conexão emocional que pudesse vir a ter com ela.


 Cada qual veste-se de uma expectativa que se há sobre o corpo e pessoa feminina de forma que temos uma análise interessante sobre a sexualidade e feminilidade. É interessante ler tais descrições e história, mas muitas das vezes as personagens são intragáveis e irritantes, e acho que isso foi proposital. Há personagens claramente feitos para odiarmos, como a estrela da Broadway Helen, que consegue ser muito detestável. É óbvio que a escritora posicionou-a para ser a antagonista, mas quem lê atualmente compreende (acredito eu) as situações de formas diferentes. De qualquer forma, é surpreendente como esse livro exemplifica a ascensão e queda das estrelas, e como a fama pode mudar as pessoas.


 Portanto, é preciso despir-se do olhar contemporâneo para compreender a obra e utilizar-se dele para analisá-la de forma crítica. Indiscutivelmente, O Vale das Bonecas aborda diversas pautas que ainda na época eram considerado tabus enormes que só viriam a ser discutidos na Segunda Onda do feminismo e no movimento hippie, como casais sáficos (entre duas mulheres), emancipação sexual feminina e mais. Então, entendo o motivo de ser considerado um romance feminista, por mais que extremamente contraditório, afinal há mulheres dependentes de homens emocionalmente, rivalidade feminina e pressões estéticas reproduzidas por mulheres.


 Ainda que seja um livro polêmico se lido nos dias atuais, creio que mais pessoas deveriam lê-lo para a discussão sobre suas pautas serem mais amplas. Já que infelizmente o livro já não é mais impresso no Brasil, poucos conhecem ele e pouquíssimos já leram-no. Ao terminar o livro meia-noite, demorei pelo menos uma hora para dormir apenas lendo o máximo de artigos e matérias sobre esse livro, para poder ter uma maior elucidação de tudo que ainda tinha dúvidas. A maioria dos materiais que li eram em inglês, então senti falta de um material sobre que fosse nacional.

 Alô, editoras, publiquem O Vale das Bonecas!


 Tendo dito tudo isso, concluo com: leia por sua conta e risco. Acho que vale a pena ler para ter um retrato fiel da década de 1960 e os arquétipos clássicos daqueles anos que se derivaram do teatro e do cinema, além de exemplificar muitas questões de forma rápida, por mais que rasa. É um ótimo jeito de conhecer mais a cultura, o pensamento e a “mulher ideal” daquela época - mas cuidado, é necessário ler tendo sempre em mente o contexto e o pensamento que já não era o mesmo de hoje.


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