“Em minha visão o amor deveria ser algo que te completa e não que te parte e te quebra, e depois ressurge como a cura pelas dores que ele mesmo causou.”


 Aviso de gatilhos: Disforia, transfobia, LGBTfobia, depressão, suícidio, agressão física, bullying, automutilação.


 Descolorindo Eloáh é um livro nacional que acompanha a adolescente trans Eloáh, que sofre imensamente com sua identidade de gênero, por seu pai ser pastor e sua mãe ser conivente com todas as agressões que sofre, além de também ser vítima.


 Durante o livro, Eloáh vai se descobrindo além da imagem quebrada que o seu pai tem dela; ela começa a se reconhecer como uma pessoa que não é doente por não se ver no corpo em que veio ao mundo, e que está tudo bem querer se adequar a quem você sente que é. Ela também faz novas amizades e descobre a paixão por cantar, sobrevivendo todos os dias com força.


 É uma premissa linda, de fato, e quando li essa sinopse e vi a linda capa que a acompanhava, esperei um livro de tirar o fôlego, sobre superação e resistência. O problema começa aí.


 Sei que nunca devemos ter expectativas sobre livros porque a chance de nos decepcionarmos é enorme, mas às vezes fazemos isso inconscientemente, e foi o que ocorreu. Como procuro sempre ser engajada em assuntos como LGBTfobia e, nesse caso, transfobia, eu realmente esperava um daqueles livros que se fazem super necessários na atualidade e no contexto em que vivemos.


 Então, vamos por partes. Acho que a primeira coisa que me perguntei ao ler esse livro foi se o autor é trans, já que os episódios de disforia da Eloáh são muito descritivos. Isso não quer dizer que se um autor que não seja trans não deva escrever sobre pessoas trans, mas acho que todos podemos entrar em acordo com o fato de que é necessária muita pesquisa e cuidado ao escrever. Quando se trata sobre a disforia, não tenho propriedade para dizer se o autor descreveu bem, porém posso dizer que não acho que o desfecho que teve foi bom. No livro inteiro, Eloáh tem episódios pesados e densos de disforia, mas ao final do livro isso não é tratado propriamente; na verdade, se foi, foi rápido demais.


 Agora preciso falar de algo mais sério e que sempre pesa muito em leituras desse tipo para mim. Quando falamos sobre a representação de minorias em todas as formas de mídia, ao serem feitas a partir do ponto de vista de alguém de fora, é sempre hiper estereotipado. E algo que me dói muito é quando minorias são escritas e descritas como puro sofrimento, como vidas que vieram ao mundo apenas para passar por coisas ruins, sem um respiro ou um ponto de paz. Isso é extremamente errado e causa o efeito contrário do que as pessoas por trás esperavam, e falo mais disso no post sobre representação e representação.


 O ponto aqui é: Eloáh sofre o livro todo, e isso me incomodou. Pessoas trans sofrem muito sim, é inegável, mas nesse livro chega em um nível absurdo e além do real. Não sei nem como colocar em palavras sobre como doeu ver a Eloáh sofrendo tendo poucos momentos felizes, e no fim do livro sem o alívio que merecia. Ela sofre até o último minuto e, no epílogo, ela magicamente está bem e tudo está lindo. Para mim, ao expor uma personagem a tanto sofrimento, o mínimo seria um final mais longo e detalhado, mostrando a recuperação merecida e as pessoas que a agrediram (física e psicologicamente) arcando com as consequências. Mas aquele final apenas me deu a impressão de que o autor pensou “Bom, vamos fazer ela sofrer até não querer viver, e nas últimas páginas tudo dá certo”.


 Retratar qualquer minoria resumida ao sofrimento e preconceito que sofre, não é só desonesto como também preconceituoso. As pessoas que fazem parte dessas minorias, como aqui no caso são as pessoas trans, têm suas nuances, personalidades, sonhos e vontades. Resumir elas em dor é mais um desserviço do que representatividade.


 Dito isso, para finalizar esse ponto, creio que o final se tornou quase insignificante frente à tudo que Eloáh passou e todos os acontecimentos do livro. Quem leu sabe como beira ao absurdo, tanto que se torna gatilho para qualquer um, e o final infelizmente não deu conta de trazer a “volta por cima” que todos os protagonistas mereciam. 


 O fanatismo religioso também é retratado no livro, mas acho que acabou tomando um tom mais caricato do que realista. Normalmente, vemos episódios de fanatismo religioso como loucura ou falta de razão, mas acho que é interessante conhecermos o cerne do problema e como tudo se desdobra em algo tão absurdo. Mas não tenho críticas propriamente a isso no livro, além de não achar que foi tão abordado além do superficial como poderia.


 Outra coisa que tenho críticas pesadas é como a transexualidade foi colocada na história, já que mesmo sendo o fio condutor da trama, foi mal trabalhado. No livro inteiro, apenas uma pessoa chama a Eloáh por pronomes femininos, e isso me confundiu demais. Percebi que ela era uma menina trans apenas em uma poesia que escreveu sobre isso, mas até mesmo depois disso, até mesmo seus amigos continuam a chamá-la pelo pronome masculino. Acho que o autor poderia ao menos inserir a discussão sobre a transexualidade de Eloáh com seu amigo, mas nem isso. Enfim, decepcionante.


 “Ela

 Não tem nome

 Nem rosto ou sobrenome.

 E se esconde

 No próprio calabouço.

 Ela

 Não tem voz,

 Nem sombra ou silhueta

 E refugia-se

 Dentro de um closet.

 Ela

 Comporta-se como um homem

 Se veste como homem,

 Mas é, e sempre será,

 Ela.”

 (pág. 19)


 Poderia passar mais parágrafos falando sobre todas as representações falhas que esse livro teve, não só sobre transexualidade, mas acho que seria chover no molhado. Então, vamos falar sobre a escrita do livro.


 A escrita é bem fluida e você lê bem rápido, porém na versão em que li (ebook) haviam muitos erros. A sensação que tive foi que quase não houve revisão, o que é desanimador e poderia ser resolvido de forma mais rápida. E a narrativa flui bastante também, porém há certos capítulos que poderiam ser retirados apenas por serem mais do mesmo, sobre a rotina da Eloáh. Caso esses trechos fossem diminuídos, o final poderia ser melhor desenvolvido e o livro teria uma finalização melhor.


 Em conclusão, para mim esse livro foi uma extrema decepção. Queria muito ter gostado, queria muito vir e dizer que esse livro é necessário e representa uma dor que pessoas cisgêneros devem conhecer melhor, mas esse não é o caso. Sinceramente, cansei de ver histórias de pessoas resumidas a dor, sejam negres ou pessoas trans, então não pouparei palavras ao dizer que não recomendo esse livro.


 Caso queiram ler um livro sobre representatividade trans, dou a dica que dei no post sobre representação e representatividade: leiam de pessoas trans, leiam de quem passa tudo na pele e conheça bem suas narrativas. E leiam histórias responsáveis sobre as problemáticas que abordam, pois quando falamos de saúde mental e temas como suicídio e depressão, todo cuidado é pouco.

 Enfim, caso você queira ler, é por sua conta e risco. Sei que houveram muitas pessoas que gostaram desse livro, mas dei meu ponto de vista e reafirmo que não recomendo ele. Espero que tenham entendido as críticas que fiz nessa resenha, pois no final é apenas uma forma e uma esperança de que os próximos livros escritos sobre essa temática sejam feitos com cuidado e fidedignidade.


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