“Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ele, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”

(pág. 87, capítulo “Baleia”)


 Fruto da segunda fase modernista que tem como principal característica o regionalismo, em Vidas Secas acompanhamos a luta dos retirantes Fabiano, um vaqueiro, e sua mulher Sinha Vitória, além de seus filhos (o mais novo e o mais velho) e da cachorrinha Baleia. Eles sofrem com a seca extrema, tendo que se deslocar sempre que o seu fantasma volta a assombrar suas vidas.


 Em uma narrativa em terceira pessoa e capítulos independentes, conhecemos uma realidade tão escassa de floreios e movida apenas pela necessidade vital da família, que é de certo um choque no início. O narrador é direto e não perde tempo com palavras vazias, apenas denotando em forma de escrita o imediatismo preciso para se (sobre)viver em situações semelhantes. Nesse caso, Graciliano foi preciso em seus recursos narrativos e linguísticos para transparecer a situação extrema dos retirantes, de forma que torna-se palpável para o leitor os sentimentos que provém dessa vida difícil.


 “Achava-se ali de passagem , era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.”

(pág. 17/18, capítulo “Fabiano”)


 Durante boa parte do livro, Fabiano não alimenta esperanças e muito menos deixa os outros as alimentem também. Porém em capítulos como “Inverno”, em que a chuva chega ao sertão, há no horizonte uma possibilidade de vida melhor que Fabiano se permite admirar.


 Devo dizer que uma coisa que me deixou hipnotizada foi a construção do psicológico dos personagens: Fabiano não se considerava homem, quase não falava e sequer sabia escrever, mas tinha uma enorme vontade de viver. Sinha Vitória contava grãos e tudo que desejava era uma cama boa. O menino mais novo queria ser um vaqueiro como o pai, o menino mais velho queria saber o que é o Inferno e aprender a ler. A cachorra Baleia foi a personagem com mais emoções humanas do livro! 


 Cabe a Baleia a parte dramática da obra, com seus sentimentos sendo descritos com atribuições humanas (“franziu”, “acreditava”, etc.), e sem ser diferenciada dos humanos com quem convivia. Durante toda a narrativa ela fica triste, feliz, sente dor, prevê a morte e a vida. Em contrapartida, Fabiano sequer se considera homem, não se dando bem com outras pessoas e tendo dificuldade para raciocinar ou se comunicar.


 “Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha. [...] Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.”

(pág. 20/21, capítulo “Fabiano”)


 A complexidade dessa obra é difícil de ser descrita em poucas linhas, mas não me perdoaria se não tentasse. Em uma terra onde sempre se muda de lar, não há espaço ou linearidade do tempo, apenas a espera pela seca; assim como a linha temporal do livro, que não tem começo ou fim, apenas um ciclo que sabemos que se repetirá. A hostilidade da terra nunca falha, e esses retirantes são reféns dela a todo momento.


 A animalização do homem, a humanização do animal, a hierarquia de poderes na sociedade que só tem como resultado a desigualdade e o sofrimento: tudo isso em 176 páginas de Vidas Secas, uma obra-prima que creio que todos deveriam experimentar ler ao menos uma vez em suas vidas.


 A definição de clássico, segundo uma das definições do dicionário, é “que serve como modelo ou referência; exemplar”; e vejo que Vidas Secas se tornou um clássico por ser um exemplo tão fiel de um microcosmo que se fez imperceptível para o resto da população brasileira, tanto em 1938 quanto ainda hoje, em 2021.

 Quantos clássicos atemporais, quantos Fabianos, Sinhas Vitórias, Baleias e Filhos vão ser necessários para que o nosso país melhore a situação dos retirantes nortistas e nordestinos? Para que o Estado faça algo de relevante?


 “A arte é o lugar em que a prisão se confronta com a possibilidade de sua superação. [...] No seu trabalho, o artista não age para atender a qualquer finalidade prática. Na vida comum, porém, todos nós, incluído o artista enquanto membro da sociedade, somos obrigados a produzir segundo as técnicas que interessam a reificação já em via de ser absoluta. A primeira coisa que nos diz uma obra de arte é que o mundo da liberdade é possível, e isso nos dá força para lutar contra o mundo da opressão. A arte é a antítese da sociedade.”

(pág. 133/134, posfácio de Hermenegildo Bastos para a edição da Galera Record de Vidas Secas)


 Vocês já leram essa obra? Se sim, o que acharam?


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