AVISO DE GATILHOS: Uso de drogas, tortura, alcoolismo e saúde mental.

“Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo.”

(pág. 4)


Em plena ditadura militar no Brasil, é lançado As Meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles - um livro que questiona a ditadura, os estereótipos do sexo feminino e tudo que transita entre e além desses assuntos. Seria considerado subversivo se algum militar tivesse chegado até o meio dele ao menos; mas como aparentemente isso não ocorreu, o livro não foi censurado. Seria muito cômico, se também não fosse levemente trágico, né?


 E que bom que isso não aconteceu, pois esse livro é um acontecimento! Ele se passa durante dois dias de 1979 durante uma greve universitária - o que parece pouco, mas a narrativa intimista (onde o senso de realidade é pautado por aspectos psicológicos do escritor e/ou personagens) faz com que esses dias pareçam semanas. 


 E de certa forma desejamos que sejam semanas, pois ao conhecer as meninas de cerca de 20 anos que dão nome a obra em seus lares no Pensionato Nossa Senhora de Fátima, ficamos encantados. Lorena Vaz Leme é estudante de Direito e romântica, guiada pelo ideal feminino; Lia de Mello Schultz é uma militante de esquerda e estuda Ciências Sociais; Ana Clara Conceição estuda Psicologia e tem sua vida marcada pelo vício em drogas e passado marcado por abusos sexuais.


 Essas três, por mais que divergentes entre si, criam um equilíbrio extasiante na obra; os capítulos são narrados por uma ou duas delas, às vezes alternando, às vezes com um locutor ligando os acontecimentos e pensamentos dela. Foi a minha primeira vez lendo um livro com fluxo de consciência, e mesmo que no começo tenha sido difícil pegar o ritmo e distinguir as três, em um ponto eu já sabia como cada uma pensava e me vi sendo tragada pelo enredo. A forma como Lygia soube diferenciar as três em sua escrita é sensacional.


 “E estamos morrendo. Dessa ou de outra maneira não estamos morrendo? Nunca o povo esteve tão longe de nós, não quer nem saber. E se souber ainda fica com raiva, ô como o povo tem medo. A burguesia aí toda esplendorosa. Nunca os ricos foram tão ricos, podem fazer as casas com maçanetas de ouro, não só os talheres mas as maçanetas das portas. As torneiras dos banheiros. Tudo de puro ouro como o gangster greo ensinou na sua ilha. Intactos. Assistindo da janela e achando graça. Resta a massa de delinquentes urbanos. Dos neuróticos urbanos. E a meia dúzia de intelectuais. Os simpáticos simpatizantes. Não sei explicar mas tenho mais nojo de intelectual do que de tira. Esse ao menos não usa máscara [...]”

(pág. 9)


 Além disso, as três reagem à sua maneira ao regime ditatorial: Lorena permanece no seu quarto na maior parte do livro, sempre com suas idealizações românticas que espera um dia se tornarem realidade; ao mesmo tempo que coloca na discussão temas incomuns e considerados subversivos (para a época), e tem uma maturidade surpreendente em situações que demandam sobriedade.


 “as letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos, agulhadas, coices - também as letras são mais atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos.”

(pág. 59)


 Já Lia tem como ideal pessoal a revolução que imagina para o povo, e mesmo sendo a rebelde que é, também é romântica em muitos momentos; principalmente quando se trata de seu relacionamento amoroso com Miguel, outro militante que foi preso.


 “Não tem nunca mais no presente, presente quer dizer imprevisto, tudo que eu posso ver agora. Ou daqui a pouco quando for agora de novo.”

(pág. 205)


 Ana Clara, por mais que prefira permanecer à margem das manifestações políticas e ideológicas por meio dos seus vícios que a deixam alheia; os mesmos vícios que trazem consequências assustadoras para ela, para as outras meninas e para o leitor.


 “Eu te amo mas não sinto nada nem com você nem com ninguém. Faz tempo que já não sinto nada. Travada.”

(pág. 27)


 A estrutura aparentemente caótica do texto apenas reflete quão caótico o Brasil também estava naquela época; pois Lygia uniu o coletivo ao discurso individual, mostrando como até mesmo pequenos atos e a subjetividade do ser poderiam ser questionados e aniquilados pela tirania ditatorial. Esse livro demonstra a resistência das mulheres contra essa tirania, mostrando que mesmo da forma mais sublime e disfarçada, talvez até mesmo inconsciente, há resistência.


 Por meio de Lorena, Lia e Ana Clara o romance discute homossexualidade, uso de drogas, o militarismo do Estado e até mesmo emancipação sexual feminina - pautas que, se já são polêmicas atualmente, imaginem na década de 1970 em meio a ditadura?!


 "Já é tão difícil crescer, ser amado por aquele que a gente ama. E tem que vir alguém determinar o sexo do amor.”

(pág. 224)


 Não posso deixar de admirar e exaltar a coragem e a força de Lygia ao publicar esse romance nesse contexto. Além de ser um dos únicos livros que narram uma tortura contra alguém dito “subversivo” pelos militares, a sua análise ferrenha e objetiva da época se eternizou em um livro que marca qualquer um que o leia; até mesmo se despedir é dolorido. Seu final marca um divisor de águas para as personagens, deixando claro que a partir daquele momento elas deixaram de ser meninas e se tornaram parte de algo maior do que suas individualidades.


 Esse foi meu primeiro contato com a Lygia (e espero que não o último), que já me chocou de início com essa sua forma de escrita tão original e diferente de quaisquer outras coisas que já li. Sempre que possível agora, irei indicar esse livro; salvo os gatilhos, é uma experiência totalmente subversiva e diferente de qualquer leitura que qualquer leitor poderá um dia fazer. 


 Vale a pena conhecer, aprofundar-se e se deixar levar por As Meninas. Não sei o que mais dizer aqui que expresse o quanto amei esse livro e o quanto eu o recomendo, portanto: apenas leiam!


“Quero te dizer também que nós, as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte. Nossa plenitude, eis o que importa. Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros.”

(pág. 63)


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