“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre as cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.”

 (p. 9)


 Passando-se no período pós-independência de Moçambique e durante uma devastadora guerra civil, Terra Sonâmbula narra as fantasias e sonhos do velho Tuahir e do menino Muidinga, que se refugiam nas terras adormecidas de seu país.


 No início do livro, ao acharem um abrigo (machimbombo), os personagens acham também cadernos de Kindzu, um provável morto que deve ter se abrigado ali. Então há a alternância de foco narrativo entre os personagens e a narrativa de Kindzu, esse último servindo como válvula de escape da realidade para Tuahir e Muidinga. Nesses cadernos, Kindzu conta sua história e os lugares para onde a vida o levou, banhado por misticismo e paixão, uma intensidade e uma riqueza narrativa inigualáveis. Com isso, os caminhos deles vão se entrelaçando e se distanciando, sendo levados para lugares impossíveis de se saber previamente, enquanto Tuahir e Muidinga se aproximam mais e mais daquela persona que se estabelecera na mente deles, quase familiar.


 Como a língua oficial de Moçambique é português, não há muita diferença ou dificuldade ao ler o livro; apenas algumas palavras próprias da cultura do país. Ainda assim, há uma cadência única no ritmo, um quê quase poético e talvez devastador. As palavras simples que Mia Couto usa para descrever uma sociedade envenenada e adoecida pela guerra carregam um peso indescritível. Não há como não se comover, não sentir o peso de uma dor sem remetente ou endereço, o peso que a guerra impõe àqueles que só querem a vida.


 O livro também fala sobre mais do que a guerra: fala sobre amor, perda, família e esperança. É um incentivo aos sonhos, a persistência, é uma inspiração. Em muitos momentos pude sentir todos esses sentimentos quase que ao alcance do coração, de tão sinceros, tão bem descritos. Há uma sinceridade em cada sentimento relatado por Mia Couto, e isso torna o livro único e hipnotizante, algo diferente de tudo que já li.


 Eu diria que esse livro é conduzido pelo sono, pelos sonhos. É como se a própria narrativa fosse sonâmbula pois, por mais que haja avanço na trajetória de Tuahir e Muidinga, no final sentimos o despertar - e no mesmo lugar do começo do livro. Essa é a magia da narrativa, o fato de não sabermos se os personagens estão mesmo despertos ou imersos em sonhos intranquilos, se tudo narrado não passa de uma ilusão da mente causada pela aflição da guerra.


 Não há como ler as paixões de Kindzu e não se apaixonar junto dele; como ler a aflição de Muidinga de não saber seu passado e de não ter sua família, sem sentir a aflição junto; como ler a raiva de Tuahir e não se enraivecer junto dele. O livro não provoca apenas uma aproximação do leitor, mas também a compreensão de uma realidade que provavelmente poucos já presenciaram.


 Os personagens são tão humanos, tão reais, que quase nos perguntamos se não existem mesmo. Como é possível um escritor criar vidas tão profundas, dores tão agonizantes, amores tão avassaladores? É uma coisa quase rara de se ver na literatura atualmente, portanto surpreende.


 E a Terra, ah, a Terra é um personagem por si própria, senão a principal. Sempre imutável, mas com uma ilusão de movimento que engana; com suas cores tão neutras que amargam a boca, com uma desolação que dói no âmago de quem vê. Tão potente, tão sofrida. Tão impotente, tão bela.


 Esse é um livro que recomendo intensamente para aqueles que, como eu, amam a língua portuguesa e desejam vê-la utilizada de forma diferente. Foi uma das primeiras obras de realismo fantástico que li, e imagino que seja um bom começo para conhecer esse subgênero. Será um livro que marcará profundamente aquele que o ler, tenho certeza.


“Afinal, todos queremos no peito o nó de um outro peito, o devolver da metade que perdemos ao nascer.”


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Sobre o autor

Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano. Foi premiado diversas vezes, como ao ganhar o Prêmio Neustadt, considerado o Nobel Americano; foi um dos únicos autores de língua portuguesa que receberam esse prêmio.





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