“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.

 Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.”

(p. 11)


 Um dos livros mais polêmicos do último século, Lolita é uma obra-prima, ainda que pertubador. Narrado por Humbert Humbert, um professor de literatura de 40 anos no caminho de ser julgado por homicídio, onde ele conta sua história e a história de “amor” dele com Dolores (apelidada por ele de Lolita) para se justificar ao júri, mesmo que tenha morrido poucos dias antes do julgamento.


 A narrativa começa na Europa (onde ele nasceu), porém logo H. H. se muda para os Estados Unidos a trabalho. Ao ter problemas com a casa em que deveria ficar, ele vai conhecer uma outra casa. A casa é de Charlotte Haze, que ele odeia tanto (senão mais) quanto a casa. Porém ao final do tour que Charlotte oferece, ele acaba conhecendo a filha de 12 anos dela, Dolores Haze. Ao se ver obcecado pela criança, ele decide se mudar para ficar perto dela e chega até a casar com sua mãe.


 “Personifiquei com tamanho brio artístico a calma que nasce do mais profundo desespero, o silêncio que precede a explosão de demência.”

 (p. 103)


 Para mim, esse livro é um dos melhores que foram escritos no último século. A linguagem é extremamente poética e cadenciada, levando o leitor a ficar hipnotizado, mas também se sentir mal pelas coisas perturbadoras que está lendo; a ambiguidade é a arma de Nabokov para sua crítica. Sua crítica nesse livro é tão bem feita que foi levada como literal, e até hoje há quem veja a história como um romance, mesmo que essa seja uma interpretação falha do cerne do livro. O livro foi proibido em diversos países, incluindo os Estados Unidos, e recebeu diversas críticas quanto ao conteúdo.


 Ao decorrer da história, conhecemos diversas nuances da personalidade desse personagem tão curioso: o fato de um amor quando era criança ter sido frustrado e ele carregar esse trauma consigo, tanto que procura em crianças (até mesmo quando já adulto) a face de sua paixão pueril, Annabel. Além disso, durante toda a narrativa há uma enorme carga de culpa que o H. H. se auto-inflige quanto a sua obsessão, pois ele sabe quão é doentio o que ele está fazendo. Ainda assim, ele continua alimentando incessantemente essa obsessão de diversas formas, manipulando intensamente todos que precisa e quer, inclusive a Dolores.


 Inclusive, um aspecto essencial para a leitura desse livro é entender que o narrador não é confiável, tendo em vista que é pelo olhar de um homem obcecado e desesperado. Com isso, há muitas passagens no texto em que ele insinua que a Dolores o provoca, seja com atitudes ou roupas. É preciso ter em mente que, muito provavelmente, era tudo sua imaginação, já que a Dolores era uma criança. Ele até mesmo tenta justificar seus atos utilizando do fato de Dolores ter tido relações sexuais cedo (antes dele). A interpretação desse livro fica difícil justamente nesse ponto, já que é preciso ter um background antes de ler o livro e uma mente muito aberta, além de não se esquecer de que a obra é uma crítica. Sem isso em mente, muitos cometem o pecado de (como citei anteriormente) interpretar o livro literalmente, e foi isso que causou a censura do livro.


 “Talvez, a essa altura, interesse aos fisiologistas saber que sou capaz - um caso especialíssimo, presumo - de derramar torrentes de lágrimas durante toda a outra tempestade.”

 (p.211)


 Quando digo que há coisas perturbadoras na leitura, não digo superficialmente; muitas vezes me senti incomodada, enjoada e mal lendo. Comecei a ler ele em Agosto/2020 e terminei-o apenas na metade de Outubro/2020, pois fui lendo-o aos poucos e descansando a mente, não forçando muito. Além dos pensamentos doentios do H. H., há cenas explícitas de sexo (ou, melhor, abuso sexual de menor), e isso foi uma das coisas que mais dificultou-me a continuação da leitura. Sequer consigo descrever tamanho nojo que senti lendo, incomodada enquanto mulher e enquanto ser humano. E, por mais que eu tenha sentido tudo isso e não tenha necessariamente gostado, entendo que o Nabokov utilizou isso como forte recurso da leitura. A crítica, quando feita por uma narrativa tão explícita e sem pudor, causa exatamente o que deveríamos sempre sentir sobre o assunto: nojo, raiva.


 “Havia naquele ígneo fantasma uma perfeição que também fazia perfeita minha selvagem volúpia, exatamente porque a visão estava fora de alcance, sem qualquer possibilidade de ser atingida e corrompida pela consciência de um tabu inarredável: na verdade, a atração que a imaturidade exerce sobre mim talvez resida não tanto na limpidez da beleza pura e proibida de uma menina encantada, como na segurança de uma situação em que infinitas perfeições preenchem o abismo entre o pouco que é dado e o muito que é prometido - os picos cinzentos e rosados do inatingível.”

 (p. 267)


 Agora falando sobre a crítica propriamente dita, a que mais me saltou aos olhos foi em relação às leis antipedofilia da época. As leis, que até hoje são falhas, eram motivo de chacota para H. H. Ele bem sabia que dificilmente seria indiciado por esse crime, não pela sua inteligência ao contornar as autoridades, mas pelas falhas nas leis e em suas aplicações.


 Outra crítica muito latente é ao American Way Of Life (Estilo de Vida Americano), que incita ao consumismo em massa, e foi muito forte nos EUA pós-Segunda Guerra. Talvez pelo fato do Nabokov ser nascido russo, ele tivesse um outro ponto de vista desse fenômeno, do que os autores americanos. Desde os costumes da Charlotte até a própria Dolores são manifestação de quão forte era o American Way Of Life naquela época; na verdade, me arrisco a dizer que a própria Dolores era uma espécie de “incorporação” dele. Como o H. H. adorava observar, ela sempre estava lendo revistas supérfluas da época, usava roupas igualmente da moda, e isso se estende. 


 Agora que uma base sólida já foi estabelecida, está na hora de falar sobre a romantização da relação pedófila entre o H. H. e a Dolores. Creio que, por mais que tenha tido muitas interpretações errôneas de leitura por diversas pessoas, isso se deve principalmente ao fato dos filmes terem romantizado intensamente a relação. Eu assisti apenas a adaptação de 1997, dirigida pelo Adrian Lyne, e não a de 1962, dirigida pelo Stanley Kubrick. Porém pela experiência que tive ao ver a de ‘97 pela primeira vez (devia ter 11 ou 12 anos), relembro de enxergar o que estava vendo como romântico e sexy. Só anos depois, ao ler sobre o livro e críticas aos filmes, percebi como me deixei ser manipulada. Creio que essa interpretação errônea se deu ao fato de terem utilizado a narração romantizada do H. H., sem deixar claro que ele não era um narrador confiável, logo, muitos dos fatos representados ali partiam de um ponto de vista extremamente deturpado e irreal. Isso é preocupante, pois muitas pessoas assistem e veem um romance, principalmente pessoas mais novas que podem ser prejudicadas por essa visão. Esse foi, para mim, um dos maiores erros do filme, por mais que a fotografia tivesse sido muito boa.


 Por fim, apenas para fechar a análise, gostaria de falar sobre o termo Lolita. Pode parecer, à primeira vista, um termo romântico, porém na verdade é um termo sexualizado (assim como Ninfetas). Inclusive no primeiro trecho do livro (vide a primeira citação) isso é perceptível nas entrelinhas. Atualmente, muito se usa o termo Lolita nas pornografias com essa conotação sexual relativo a um estereótipo infantil, seja de crianças ou de mulheres que se vestem e se portam como crianças. O termo ninfeta, por sua vez, por mais que tenha uma origem mais antiga que o livro e usos já registrados, em Lolita o H. H. utilizou-o para descrever crianças entre 9-12 anos pelas quais sentia atração. Esse termo também é utilizado em pornografias e etc.


 “Ah, Lolita, tudo o que me restou para brincar foram as palavras!”

 (p. 34)


 Enfim, não posso dizer que indico esse livro, pois ele tem tantos gatilhos que considero quase irresponsabilidade. Contudo, devo admitir que essa foi uma das melhores obras que já li em suas diversas nuances e facetas, e considero-a uma obra-prima. Demorei muito para digerir a história, tanto que tinha dado apenas 2 estrelas para ela, porém depois de algumas pesquisas e de voltar em alguns trechos e capítulos, dei 4,5 e favoritei. Esse livro é sensacional em suas muitas críticas, nas emoções que provoca, na acidez contida na escrita. Para quem se interessa por livros clássicos da literatura, considero esse um dos obrigatórios. Nesse caso, para quem pretende ler, deixo avisado: muita coragem e persistência! E uma observação: minha edição é uma de 2003, da O Globo, mas a que deixarei aqui abaixo é da Alfaguara, pois é a mais recente :)


 “Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita.”

 (p. 312)


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Sobre o autor

Nascido em São Petersburgo, na Rússia, em 1922, a família Nabokov emigrou para a Europa Ocidental em 1919. Em 1940 ele fugiu das tropas alemãs e se estabeleceu nos Estados Unidos. Escreveu a maioria de seus primeiros livros em inglês e, portanto, se consagrou como um autor "estadunidense". Foi professor de literatura e escritor, sendo seu romance de maior sucesso Lolita, porém tendo escrito outras obras igualmente aclamadas, como Fala, Memória.






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