“Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem.”

É impossível, para quem ama esse livro como eu, não se arrepiar com a primeira frase de Capitães da Areia. Escrito por Jorge Amado em 1937, esse livro acompanha a vida de crianças abandonadas por suas famílias e pelo Estado, vivendo pelas ruas de Salvador (Bahia). Essas crianças, malandras, sobrevivem de furtos e são temidos pela população. Alguns dos personagens que mais me chamaram a atenção são Pedro Bala (líder do grupo, de forte caráter revolucionário), Sem Pernas (uma criança com deficiência física, e aquele que creio ser a representação de todo o ódio que é gerado pelo abandono), Professor (mediador do grupo quanto as notícias, por ser o único que sabe ler) e, finalmente, Dora. Essa última para mim é uma das personagens mais personagens mais importantes e cativantes, além de ser uma menina extremamente forte; se torna órfã quando a mãe morre de varíola e tem que cuidar de seu irmão mais novo sozinha. Por acaso, acaba indo viver com os Capitães da Areia e se torna querida: veem nela a mãe e irmã que não tiveram, e também a paixão de Pedro Bala e do Professor. Citando o livro, “Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem o que era amor. Apesar de não ser noite de lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olho porque pensava que isso era namorar. E seu coração batia rápido quando o olhava. Não sabia que isso era amor.”


Creio que, antes mesmo de começar a falar sobre o livro em si, é importante conhecermos o conceito em que ele foi publicado. No ano de 1937, o Brasil vivia um momento delicado, em que Getúlio Vargas implantou a ditadura, conhecida como Estado Novo. Com isso, houve uma intensa repressão, principalmente aos considerados “comunistas” pelo governo, sejam pessoas ou obras. Assim sendo, Capitães da Areia foi qualificado como um livro “social e proletário”, e teve 808 exemplares queimados em praça pública, em Salvador. Ao ser republicado alguns anos depois, o livro se tornou um best-seller.
 Em termos de escrita, é um livro de fácil compreensão, com um “quê” de beleza e poesia em sua escrita, conferindo uma aura de dramaticidade, porém sem tirar a importância da crítica exposta.
 Suas entrelinhas guardam intensas aflições e nos faz refletir muito; sua crítica a marginalização das crianças pobres e seu abandono parental e estatal o fez polêmico como foi e ainda é. Pelo narrador (claramente e compreensivamente) imparcial, conhecemos os efeitos de tudo isso e o que levou aquelas crianças a cometerem crimes. O perspicaz narrador não as vê como criminosos, mas como vítimas, e acima de tudo, humanos privados de suas infâncias. Além disso, não nos é dado somente uma visão interna, mas também externa: do preconceito de caráter elitista intrínseco na população, que crê que o âmago desse “mal” são as crianças e não as circunstâncias. E o que mais me tocou no livro foi como essas crianças são facilmente desumanizadas, e seus sentimentos, completamente ignorados. Citando o livro, “O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas.”


Nesse ponto, gostaria de discutir alguns dos problemas abordados no livro, nas entrelinhas ou abertamente. O primeiro é a Hipocrisia, mostrado pelo ponto de vista do Padre José Pedro, que ajudava os meninos da forma que lhe era possível. No decorrer do livro, ele é repreendido por superiores e pessoas que frequentam a Igreja, que dizem que ele utiliza o dinheiro da Igreja para dar às crianças tão temidas por eles. O seu superior chegou até a dizer que ele soava como um comunista ao tentar defender os meninos. Citando uma fala do padre ao falar com o cônego, “ Que culpa eles têm? Quem cuida deles? Quem os ensina? Quem os ajuda? Que carinho eles têm?”. Isso me deixou pensando muito sobre aqueles que falam em ajudar o próximo, mas afastam o próximo e o demonizam quando ele mais precisa.

 O segundo é o efeito do Abandono de crianças, ponto que eu já abordei mas quero me aprofundar aqui. Esse é mostrado pelo ponto de vista de muitos dos Capitães da Areia, mas principalmente do Sem Pernas. A sua história, seja anterior ao período da narrativa do livro ou ao longo dele, é angustiante. Ver o quanto ele sofreu por isso, e o ódio extremo que ele acumulou por conta disso, é esmagador.

 O terceiro é a Repressão Estatal por meio da Polícia às crianças, mostrado através do Reformatório. Quando há cenas no Reformatório é (no mínimo) repugnante. Naquela época havia a falha crença de que se aprendia com a violência; no caso do Reformatório, não há nada para ensinar, mas apenas uma ferramenta do Estado para punir e acabar com aqueles que consideram marginais.

 O quarto é um aspecto mais geral, o Medo do Comunismo. Esse aspecto é mostrado em diversos momentos do livro, e para entendê-lo é necessário um recorte histórico. Desde a Revolução Russa, havia um medo generalizado nas nações liberais do comunismo, como se este fosse algo perigoso, destruidor dos valores da religião e da família. Esse tipo de manipulação veiculado principalmente na mídia é utilizado por governos de direita e totalitários, inclusive foi utilizado por Getúlio Vargas como uma forma de implantar o Estado Novo (período ditatorial da Era Vargas). Jorge Amado foi astuto ao utilizar desse medo e criticá-lo, mostrando a capacidade da população e autoridades de se alienarem por meio da mídia ou discursos políticos. Atual, não?



Esse livro é, dentre tudo já citado, plural. Não é somente sobre o povo baiano, mas sobre todo o Brasil e suas mazelas; tais quais permanecem até hoje, com discussões como a redução da maioridade penal, “bandido bom é bandido morto”, e por aí vai. 
 É provocante, instigante e emocionante: te faz sentir raiva, sorrir, chorar e se apaixonar. É tão necessário para que tenhamos uma ampla compreensão e empatia para quem vive em situações semelhantes. Não se resume apenas a um romance social e proletário, é também a representação de um povo que falhou com suas crianças, mas nunca sem dizer-nos que ainda há esperanças de dias melhores.
 É um livro do povo, sobre o povo e para o povo; é sobre ser revolucionário, “porque a revolução é uma pátria, e uma família”.

Sobre o autor
Jorge Amado foi um dos autores mais famosos e traduzidos do Brasil de todos os tempos. Foi autor das obras mais adaptadas para o cinema, televisão e teatro. Suas 49 obras já foram traduzidas para 80 países, em 49 idiomas.
 Nascido em 1912 em Itabuna, na Bahia, o autor integrou quadros da intelectualidade comunista brasileira, ideologia presente em diversas obras. Recebera diversos prêmios, nacionais e internacionais, dentre eles o Prêmio Camões de Literatura. 
 Morreu dia 6 de agosto de 2001 ainda na sua amada terra, Bahia, em decorrência de uma parada cardiorespiratória.



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