“A escuridão de uma noite sem lua nem estrelas, numa fazenda centenária no parado tempo de Minas, nada mostra, nada confessa. Entrega ao vivente o terror de suas fraquezas.”



A citação acima explicita bem um dos tantos aspectos hipnotizantes desse livro. Em Tempos Extremos, acompanhamos a Larissa, uma mulher de 38 anos deslocada que se encontra com a família para o aniversário da matriarca na fazenda centenária do interior de Minas Gerais, Soledade de Sinhá. Essa fazenda será o cenário de uma jornada em que Larissa desvendará os mistérios do passado escravocrata da fazenda, enquanto tenta lidar com as brigas políticas entre sua mãe Alice, uma ex-presa política da época da ditadura, e seu irmão Hélio, um militar de carreira. 

Com uma alternação entre passado e futuro genial que a autora implanta na narrativa, somos apresentados aos escravos Constantino e seus filhos Bento e Paulina, tais quais procuram uma forma de sair da situação em que se encontram, um por meio de violência e outra por meio de amizade com os brancos. Procurando intermediar o conflito entre os dois e decidir qual forma é a melhor, Constantino pede a ajuda de Larissa, mesmo estando separados por séculos. No intermédio de tudo isso, vamos conhecendo o passado do Constantino e da própria fazenda, além de conhecermos o horror incomensurável que foi a escravidão.



Eu nunca havia ouvido falar desse livro antes, e não faço ideia do motivo; é simplesmente um daqueles livros que você deseja que todos leiam. Por meio da ficção, Míriam Leitão denuncia um passado que o Brasil se recusa a conhecer: o da violência, violência que utilizamos como alicerce para construir a sociedade que conhecemos atualmente. E, curiosamente, o movimento negacionista brasileiro se acentuou nos últimos anos: negam que houve uma ditadura, negam que toda a sociedade tem uma dívida histórica com os negros por conta dos séculos de escravidão que tivemos e suas consequências presentes até hoje na vivência dos negros no país. E por que? Porque é mais fácil negar uma parte da história que mostra como temos sangue nas mãos. Sangue dos milhões de negros escravizados, torturados, vendidos, mortos. Sangue das 1843 vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil, sendo que 434 morreram ou desapareceram (números identificados pela Comissão Nacional da Verdade, porém se admite que deve haver muito mais entre esses grupos). Citando o próprio livro, “Eu sou da geração que teve que construir a imagem do pai, do tio, da mãe, a partir dos retalhos que nos ficaram, muitas vezes fantasiando, é verdade. Mas a geração que tem que contar o que houve é a que viveu de frente esse tempo louco. Eu tenho a minha obsessão pelo encontro com os diversos passados mal contados deste país. O que me incomoda é essa atitude de fuga, como se o passado mal resolvido não fosse cobrar sua conta. E essa urgência do resgate ficou aguda na fazenda. Escravidão, ditadura, nada foi encarado com coragem.”


O fato é que, é mais fácil negar a culpa do que admiti-la e perceber o quão coniventes fomos com a violência pregava e consumada no país, o quanto fechamos os olhos para os traços de repressão que ainda há (e nem sempre tão disfarçados), ou que o racismo ainda é um dos problemas principais que temos na sociedade atualmente. É difícil aceitar tudo isso, eu sei. É difícil carregar consigo a culpa de toda a história de um país. Mas, como disse Edmund Burke, “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Um problema só pode ser resolvido quando reconhecermos que ele é um problema. Como a personagem Larissa diz em uma conversa com Constantino, “Depois da escravidão em si, virão outras formas de negação ao seu povo. A pobreza, o abandono, novas formas de exclusão. A verdade será dissimulada, as explicações, oblíquas. [...] Se pudesse levá-lo comigo a ver as cenas que vejo nas ruas, nas empresas, nos restaurantes dos ricos, eu mostraria os vestígios desse passado que tantos fingem não ver. Nas festas das áreas ricas das cidades, os brancos comemoram e confraternizam, e os negros servem e tocam. E circulam invisíveis entre os convidados. Há cenas do nosso cotidiano tão intensamente arcaicas que eu teria pudor em mostrá-las porque parecem o passado do qual precisamos nos livrar. Não te acalmo, Constantino, eu sei. Mas não minto. A liberdade dos seus é o nosso futuro. O sucesso dos seus será o nosso sucesso. Não haverá esperança para todos nós sem vocês. Porém, em grande parte do caminho as pedras mais pesadas serão carregadas pelos seus. Tem sido assim. Não nego.”

 


Eu diria que esse livro é sobre o negacionismo histórico no Brasil, resumido e exemplificado de forma majestosa pela Míriam Leitão, utilizando de um enredo que abrange ambas as temáticas (escravidão e ditadura) e as interliga, mesmo que remotamente. Além disso tudo, ela tem uma escrita extremamente sensível e tocante, algo que nunca vi igual antes. Não é atoa que durante a leitura tive que parar para respirar, muitas vezes sentindo uma angústia, e me peguei chorando diversas vezes durante a leitura. A autora não só descreve os sentimentos decorrentes da Larissa, de sua família ou do Constantino e seus filhos, como também os faz atravessar a página e alojar-se em nosso corpo; quando há tristeza, sentimos a tristeza. Quando há agonia, sentimos a agonia. Quando há nem que seja um sentimento de ser deslocado do mundo em que vive, da realidade em que estamos inseridos, nós sentimos. Esse livro não nos passa sentimentos que desconhecemos, ou que nos parecem distantes; muito pelo contrário, os sentimentos dos personagens são tão humanos, palpáveis e comuns, que o ato de reconhecê-los é inconsciente. Descrições como “Nunca soubera como se encaixar. Era como uma peça errada no quebra-cabeça da vida.” são sucintas e simples, e é justamente isso que me admirou. A simplicidade. Creio que esse livro seja um complemento fascinante àqueles que gostam de livros baseados em acontecimentos do Brasil ou mundo, pois além da leitura fácil e do enredo envolvente, aborda de forma sensível e humana tais acontecimentos que vemos com tanto distanciamento. Indico a todos. E se por acaso você já leu ou pretende ler esse livro após esse post, me conte sobre.


Sobre a autora

Nascida em 1953, em Minas Gerais, Míriam Leitão se formou na Universidade de Brasília e exerce a profissão de jornalista há 40 anos. Já trabalhou em diversos programas de televisão, rádio e jornais, como a Rede Globo e O Estado de São Paulo. Em 1972, quando estava grávida, foi presa e torturada pelo regime militar por ser militante do Partido Comunista do Brasil. Ainda exerce a profissão de jornalista na Globo News. Ganhou diversos prêmios, dentre eles o Prêmio Jabuti em 2012 por um livro de não-ficção e Livro-Reportagem ("Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda") e o Prêmio Liberdade de Imprensa em 2017.



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